quinta-feira, 23 de maio de 2013

PARA SER ESQUECIDO




Rabisco um guardanapo, misturando palavras, desenhos e marcas de saliva, enquanto misturo cervejas baratas, um destilado amargo e um aperitivo estranho, retirado de um vidro de conserva que mais parecia pertencer ao laboratório de anatomia de alguma faculdade de medicina. Em mesas de bar as conversas fluem em velocidade inconstante, lucidez insensata, mas minhas preocupações parecem fixas no vidro de conserva sobre o balcão, que parece me encarar de modo insistente.
Subitamente me sinto parte de uma pintura de Salvador Dalí, observando uma paisagem distorcida, com risos que parecem derreter-se ao meu redor, enquanto meu foco se volta a um felino de bigode chamuscado, olho furado e rabo deformado a roubar pedaços de salame picotados na forma de petiscos sobre o balcão, enquanto bêbados conversam de modo intrépido - como quem a qualquer momento irá de encontro ao chão - sobre assuntos aleatórios e desconexos, mas que àquela altura assumem toda relevância do mundo.
Entregue a estes terrores noturnos continuo meu processo de purificação, ingerindo doses generosas de culpa destilada, seguidas de copos gelados de perdão sem colarinho. Os guardanapos já não possuem ordem, mas fazem todo sentido. Mesmo que este sentido esteja escondido nas imagens distorcidas que tento visualizar através do copo cheio de cerveja.
Os risos obstruem qualquer delírio de sobriedade, as intermináveis declarações de amizade fazem parte do pacote. A nada elegante senhorita que oferece seus favores em troca de dinheiro rouba a cena com sua coreografia performática em cima da mesa de sinuca, na caçapa do canto, enquanto as bolas escapam pelas redes furadas se alojando por todos os lados do distinto recinto.
O cheiro de vômito e urina azedam o ambiente, mas mal são percebidos quando misturados ao suor e ao hálito etílico, pois estes se fazem mais perto do próprio nariz do que o banheiro. Tudo tão cheio de vida, tudo tão puro e desinteressado, que nos faz sentir como uma família. Tudo tão intenso e ao mesmo tempo tão pronto para ser esquecido mais uma vez... não fossem os guardanapos no bolso de minha calça...
                                             

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

SOBRE TUDO AO MESMO TEMPO PRA NÃO DIZER NADA




Já não tenho mais tanta paciência com toda minha impaciência.
Já não faço contas, pois há muito abandonei a crença na precisão matemática.
Procuro esconder de mim mesmo que faço planos, pra me enganar com o gosto da imprevisão.
Fins de calendários são apenas o sinal de que está na hora de trocar aquela folhinha já desgastada do ano que se finda.
Não há nada de novo, tudo é tão antigo e tão amarelado quanto os sorrisos fakes das fotos originais das redes sociais.
Todos querem estar na vitrine, tanto, a todo custo, que por vezes, olho para muitos procurando a etiqueta com o seu preço.
O de sempre vem com nova roupagem: promessas de ano novo, balanços artificiais, fogos de artifício que rasgam o céu da noite e que apenas enlouquecem os cães da vizinhança, mas na maioria são vazios de significado.
O novo continua muito antigo, praticamente empoeirado, porque na realidade todos fazem o mesmo de sempre, acreditando que algo mudou.
Não há ruptura! São ritos de passagem...
Você não será melhor ou pior amanhã... você será o mesmo, com suas continuidades e descontinuidades, acompanhado de uma lenta transição, um fluxo impreciso que você pode controlar de forma mais ou menos incerta.
Isso é que o faz humano e capaz de lentamente ir se transformando, a qualquer hora, sem ser necessário contagem regressiva ou champagnes sendo estouradas.

Segunda feira, 31 de dezembro de 2012.

terça-feira, 26 de junho de 2012

O ENCANTADOR REINO DE MARK



Desabafos sobre educação, redes sociais e a falência múltipla de órgãos de muitos estudantes  (pois cérebro não deve ter vindo acoplado em tais seres*)

PALAVRAS CHAVES: facebook, educação, mercantilização, idiotices de minha parte.

Acordei cedo como de costume e saí para o trabalho. Escutava meu bom e velho rock n’roll a caminho de mais um dia cercado dos desafios que o universo da educação oferece. Foi uma manhã fatigante: conversas paralelas, falta de atenção e descomprometimento foram alguns dos ingredientes que começaram a dar o tempero para aquela quarta-feira. Durante o almoço, cansado, desabafava com minha esposa sobre alguns alunos que tirei de sala, sobre as mais absurdas perguntas – entre elas se “erudição era aquele negócio do vulcão” – e como tudo isso seria engraçado se não fosse triste.
Antes de retornar ao trabalho no período da tarde, acessei o facebook e percebi que aquele era o mundo perfeito. Ali todos eram felizes: muitas fotos de pessoas sorridentes, questionamentos sociais e políticos, defesa da natureza, filosofias de vida, protestos contra a violência, luta pela igualdade de direitos, pela defesa dos tamanduás travestis que uniram de cabeça para baixo em palmeiras do deserto... que universo fantástico! Era ali, nessa sociedade que eu queria viver, com pessoas cultas, engajadas, bonitas e simpáticas. Por um segundo cheguei a me arrepender da injustiça de duvidar do potencial de alguns alunos, de ter tirado de sala outra meia dúzia, pois ali no facebook era possível ver seu verdadeiro desempenho enquanto ser humano, toda sua sapiência. Mas o trabalho me chamou e não pude permanecer conectado.
Me entristecia ao ver aquelas pessoas tão bonitas fisicamente, todas desamparadas na vida real, tão fortes quanto suas fragilidades. Me desapontava ver aquelas pessoas que tanto tinham a dizer com seus meme’s e suas fotografias do Willy Wonka, tão emudecidas. O que houve com a boa samaritana que há pouco postava gif’s coloridos sobre Jesus e que agora atravessava a rua perante um pedinte sentado na calçada? Onde estava todo aquele ímpeto tranformador, aquela energia realizadora, aquela felicidade das fotos... Quero voltar ao facebook! Quero viver lá, me angustia ver a maioria das pessoas como elas realmente são: Zuckerberg aprimorou a criação, lá sim o paraíso o é em sua plenitude. Mas ainda tinha mais um período em sala de aula.
A noite começou com a concorrência desleal dos bares, dos “neymares”, dos “tchus” e dos “tchas”. Mas aquilo era apenas o começo da noite, durante o fim do meu dia. Fui interpelado por um aluno que questionou a linguagem difícil do texto daquela semana, com palavras como veracidade, aristocracia, inculcar e outras, de pequena densidade intelectual, mas que para os poetas das redes sociais eram labirintos sem saída, sem sequer habilidade para folhear um dicionário. Outra acadêmica me interpelou dizendo que deveria usar palavras “menas” difíceis. Doce bobagem a minha querer, com toda a delicadeza, corrigi-lo, dizendo-lhe que sempre era menos, independente se masculino ou feminino. Por alguns segundos, sua testa franzida, seu olhar de desconformidade, mostrava sua angústia, quando a mesma perguntou: “não existe ‘menas’ nem na previsão do tempo?”. Vasculhei as gavetas da memória, não possuía resposta, não encontrava relação. Foi quando ela disse que sempre ouvia no noticiário que “estávamos sujeitos a temperaturas amenas”. E até ao final da noite foi daí para pior.
Tive medo de dormir, pois poderia sonhar com estes anjos do mal que carregam cadernos e mal sabem escrever. Que acreditam que o conhecimento se dá por osmose. Que ocupam bancos universitários e conseguem diplomas – por um instante quase digitei conquistam, mas acho que a palavra se aplica a uma minoria. Na noite insone lembrei-me de médicos que esquecem instrumentos em pacientes, também de administradores que falem empresas, de contadores que erram seu imposto de renda... lembrei-me inclusive de um fisioterapeuta que para distensionar minhas costas me arrumou um problema no joelho. São esses profissionais que estão vendo os estudos prejudicarem seu desempenho no facebook.
Armados com um diploma universitário. Terrivelmente armados com um diploma universitário. Melhor seria dizer que estão armados com o sertanejo universitário, pois sua qualidade musical é proporcional a pobreza intelectual da maioria (para não ser excludente e correr o risco de ser processado vamos citar outros mais: axé, funk, forró, gospel, emo etc). Tem vezes que me vejo como o irmão mais novo travando o namoro da irmã no sofá. Aquele menino pentelho, que fica empatando a fod@#%! Pois os colégios e faculdades, em sua maioria, estão dispostos a vender o diploma, o aluno/acadêmico disposto a comprar, mas os professores, muitas vezes insistem em se enfiar no meio da educação, travando tudo com suas teorias, empirias, leituras e debates: moleques chatos e inconvenientes!
Ainda bem que o mercado é desumano – ao contrário do facebook, que é bonzinho – e trata de eliminar, muitas vezes sem dó nem piedade, os incautos e incapazes jovens. Desqualificados até mesmo para tirar a poeira de seu diploma que para nada lhe serviu, pois um pedaço de papel não tem o mínimo valor no universo virtual, pois um simples título já não é diferencial competitivo, é apenas exigência mínima. Fora do universo perfeito das redes sociais – ou, até mesmo nelas – o que te faz alguém melhor é a capacidade intelectual e não as “amizades verdadeiras 4ever”, as bebedeiras homéricas ou meme’s que só dizem o quão frívolo e imane pode ser o som emitido de sua caixa protetora do encéfalo.

* talvez o cérebro fosse apenas opcional e o consumidor optou por compensar em bunda ou músculos.

Terça-feira, 26 de junho de 2012.

terça-feira, 22 de maio de 2012

RECEITA PARA SE VIVER




Ponteiros que giram ao contrário, algo tão surreal quanto a própria realidade. Cotidiano impregnado do que é extraordinário, desconstruindo a rotina com compromissos marcados sem data ou horário.
Vida é um conceito demasiado complicado. Em qualquer aspecto – biológico, filosófico, teológico... –  portanto, apenas viva-a. Com toda intensidade, com toda insanidade,  com toda responsabilidade, simplesmente viva-a. Como se estivesse viva ou como se fosse morrer amanhã.
Não importa o quão torta possa ser sua rotina. De nada vale todas suas gavetas ou pastas, colocando ordem a tudo. Nem mesmo seu desapego ou seus devaneios intelectuais ou até mesmo tudo isso, as coisas simplesmente merecem ser vividas, ao seu modo, do seu jeito, com lhe fazer sentir-se feliz.
Se iluda ou seja cético. Tome um café forte, sem açúcar e em seguida saboreie um algodão doce. Leia um livro ou assista a um filme pornô, vá a missa ou ao camelô. Simplesmente faça! O que for preciso, mesmo que o preciso seja passar o dia em meio a cobertores deitado no sofá.
Preencha-se de dor, se necessário for. Pinte-se de alegria ou quebre tudo, rasgue livro, rode discos ao contrário. Embriague-se e curta a ressaca do outro dia, prometendo nunca mais repetir o mesmo que irá fazer exatamente igual na próxima semana.
Pule de um prédio ou do alto da gangorra. Seja franco, até quando mente para si mesmo. Chegue no horário, pois o coração dela pode já não mais estar agüentando de tanta ansiedade. Desenhe uma família com bonequinhos de palito. Ame seus pais ou, quem sabe, odeie-os se preciso; toda realidade só é real por ser experenciada a partir de suas próprias possibilidades.
Ame inclusive seus problemas, eles são você (muitas vezes podem ser o que de melhor existe em você!). Seja sua paciência e sua ansiedade, seja sua acomodação ou sua inquietude. Tome sua dose diária de ritalina ou siga sua reta até o fim, sem parar de falar até a hora que resolver dormir.
Tome uma coca-cola enquanto protesta contra o capitalismo. Seja ateu e se converta, dobre a esquerda e siga reto. E, agora, o mais importante: esqueça tudo o que leu até aqui! Viva como você precisa, a sua maneira, como te faz viver... pulmões inflados, sorriso no rosto ou dores no peito... viva! Como tem que ser... mesmo sem entender, simplesmente viva!

terça-feira, 8 de maio de 2012

NÃO MAIS QUE PALPITES




Vi coisas que fizeram meus olhos tremerem, não pelo medo de enfrentá-las – pois o medo muitas vezes é um de nossos melhores aliados –, mas pelas lágrimas que marejaram os olhos, me fazendo navegar para um infinito que se encontrava no passado ou, talvez, em outra dimensão. Respirar tornou-se um exercício cuidadoso, por mais que se inspirasse todo a atmosfera para dentro dos pulmões, as freqüências cardíacas tornavam a respiração algo complexo demais para se fazer com tranquilidade.
As emoções confundiam os sentidos, distorciam as funções vitais. Os pensamentos não eram claros, os limites físicos do tempo-espaço pareciam se desmaterializar como o vapor condensado da respiração em dias frios. Tive medo por não te ver por um instante. Meus sentidos se encheram de aflição e minhas certezas se tornaram não mais que palpites.
Com um mapa nas mãos me apontando a direção, não sabia qual era o seu lado certo. Todas as rotas pareciam estar distorcidas. Todos os carros pareciam correr na contramão. Todas as dúvidas podiam ser vistas estampadas na parte interna de minhas pálpebras e de olhos fechados ou abertos as via correrem por entre imagens turvas e emoções fora de foco: e se o sol não nasceu à leste? E se esse frio for o verão? E se o combustível não abaixar? E se os lençóis ao meu lado continuarem a amanhecer vazios?
Insensatas fraquezas, tão estúpidas quanto nossas certezas. Fraquezas inexatas, tão imprecisas que transparecem toda sua beleza, pois é justamente nelas que enxergamos aquilo que as luzes da cidade, o movimento apressado dos carros e das pessoas, as contas do mês, não nos deixa perceber... que a hora de amar é agora, que toda dor é inevitável, mas o simples gesto de um sorriso, o leve toque dos lábios, coloca todo o universo nos limites de uma equação. 
Tudo é perfeito mesmo quando imperfeito. O infinito se finda logo ao dobrar a esquina. Mas também as figuras enxergadas nas nuvens são eternas, assim como o vapor outrora expirado. Pois descomprometidas risadas de piadas tão espontâneas que fora do seu contexto não teriam a menor graça, só assumem sentido quando dois olhares se refletem um no outro, acalmando a respiração, fazendo todas as funções vitais ser algo sem importância e completamente despercebidas.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

MEU PRÓPRIO CIGARRO




Os dias passam como horas e as horas como séculos, quando a ansiedade nos desprende do presente e transporta o espírito para uma esfera descolada do agora. Vi teus olhos tristes, mais uma vez, tentei te culpar pela minha tristeza, quando na verdade meu coração já havia me sentenciado.
Encontrei a paz no teu olhar e enxerguei a tempestade em teus cabelos, me fiz escudo pra te proteger e mal sabia que eu não tinha tanta força assim... teus cabelos me envolveram como correntes e teus olhos se fizeram espelhos que traduziam a fraqueza que eu não conseguia ver em mim.
Quantas vezes aprendemos nosso egoísmo por querer o que não temos e esquecemos de ver a beleza daquilo que possuímos. Provações em provocações, que testam nossa fortaleza e a fidelidade dos sacrifícios, de corações humanos em decorações de altares divinos, em honra a deuses que foram tão humanos quanto nossas fraquezas.
Sentando a sombra que assombra, no limite muito tênue entre divinizar os homens e humanizar os deuses. Vivendo a inconstância de não saber o que renunciar, pois amar traz em si desafios e aceitar o outro expõe toda a dificuldade que é, por muitas vezes, negar a si mesmo. 
Tragando ares da minha própria fragilidade, como se respirasse a fumaça do meu próprio cigarro, de forma a me contaminar um pouco mais. Começo a me olhar em teus olhos e me vejo como há muito não me via, um futuro sem passado como quem desperta de um coma profundo e não sabe se está em transe ou se tudo é da forma exata como enxerga. Inalando fumaça tóxica dos meus próprios pensamentos, exalando odores de desconforto, de modo a afastar até mesmo o que mais te agrada em mim.

domingo, 6 de novembro de 2011

PELA LIBIDO




Por mais de uma vez se sentiu sozinho naquela tarde. Seus olhos percorriam corpos, perdiam-se em curvas, insinuavam desejos e pareciam gritar a insanidade que pulsava em suas veias. Sentiu vontade da saliva, do suor, da pele macia, dos cabelos presos entre os dentes... sua mente explodia em um turbilhão de desejos, por vezes acomodava melhor o corpo em sua cadeira como forma de disfarçar estímulos e impulsos que sensivelmente percorriam sua pele.
Não conseguia pensar em outra coisa, ficou paralisado, observando o corpo de lado, os contornos da boca, os lábios desenhados, a calça que marcava os quadris bem acinturados, os seios pequenos e a barriga levemente, talvez propositalmente, a mostra.
Naquele momento sentia-se demasiado envolvido, consumido pela libido, seduzido pelo perigo... seus olhos tinham a fixidez de uma tela expressionista e disfarçar era algo impossível, incabível...
Quando ela virou-se em sua direção, um pouco sem jeito, e encarou-o fixamente, de modo tímido, mas muito segura do que queria, ele, homem feito, barba na cara, sentiu-se um menino. De cabeça baixa, com olhares fugidios, mal conseguia fitar outra coisa que não o bloco de rascunhos e as canetas que tinha a sua frente. Reprimia a si mesmo e não sabia o que fazer.  Mal parecia o homem decidido e seguro de si, transbordante de avidez e que há pouco se fazia dono da situação. 
Perdeu o chão, perdeu a rima, esqueceu-se do refrão. Dali até o final do expediente disfarçou por horas afazeres e preocupações. Assistiu-a se perder ao fechar a porta do elevador e rumou direto para casa. Dispensou suas já conhecidas revistas inadequadas para menores e decidiu ficar a sós com suas fantasias e desejos, repelidos pela timidez e insegurança. Alimentou suas lembranças, desenhando loucuras de olhos fechados e com as mãos ocupadas, até relaxar e dormir.

domingo, 30 de outubro de 2011

NAQUELE DIA




Pensava tê-la visto cruzar a rua, há poucos metros de sua casa, correu até a porta e subiu na grade do portão. Ainda era cedo para qualquer alucinação, nem bem o relógio marcava onze horas, o almoço nem começava a ser preparado e a primeira garrafa sequer fora aberta.
Não podia ter sido um delírio e a falta de evidências o perturbava, tinha certeza que era ela... precisava que fosse, e não por acaso, mas por uma despretensiosa pretensão, que por ali transitava, como quem recria caminhos e faz reviver sentimentos que nunca morreram.
Ficou pensativo por alguns minutos. Colocou-se a preparar o almoço, como quem pressentia uma visita de uma antiga novidade que lhe faria voltar a vida. Preparava tudo uma atenção especial: a salada colorida, com várias hortaliças, o cozido com pouco sal, mas algumas ervas finas, o arroz um pouco papento... tudo do jeito que ela sempre gostou. Fazer isso o fazia reviver o passado, a mantinha viva dentro dele. O mantinha prisioneiro de algo que nunca quis se libertar.
Vestiu-se de modo elegante, porém casual, como forma de estar bonito e apresentável, passando a impressão de que não esperava por alguém. Despiu-se da tristeza que lhe fazia companhia, sorriu como nem ao menos lembrava saber sorrir. Cingiu o ambiente, quarto, sala e cozinha, de música viva, que transpirava poesia. Sentou-se ao sofá, com os pés sobre a mesa de centro, assoviava, de modo a parecer espontâneo, o ritmo de canções velhas amigas.
Assistia-se refletido na televisão desligada, enquanto abria a primeira, a segunda, a quinta e a oitava lata de cerveja. Perdeu o apetite. A ansiedade de esperar pela visita não combinada o consumia e adormeceu por ali mesmo, no meio da tarde, enquanto o CD riscado repetia um mesmo verso de uma música triste e conhecida.
Quando acordou, a noite já caía, o dia se ia e levava consigo mais da sua vida, que aos poucos se esvaía, numa angustiante espera alimentada sempre com centelhas de esperança vazia. Perdia-se para ele mesmo, para a prisão que construía, sempre que esquecia o presente e vivia o futuro esperando pelo passado, ressuscitando a morte numa construção convergente do caminho que os unia.


sábado, 15 de outubro de 2011

DALI EM DIANTE PRA SEMPRE




Esperava ansiosamente o dia nascer. Mal conseguiu dormir naquela noite e acordou duas horas antes do relógio despertar. Repassou mentalmente uma dezena de frases de efeito que ensaiou para impressionar. As horas custavam a passar. Roia as unhas, chegou a rasgar um pequeno pedaço de pele que, por vezes, o distraía enquanto se ocupava da dor.
Tomou um banho demorado, olhou-se várias vezes no espelho, ensaiou sorrisos e olhares, e tão logo perfumou-se colocou o jeans e a camiseta nova que a semana toda planejou usar.
Os primeiros cantos dos pássaros começavam a ser ouvidos, alguns raios de sol penetravam ainda discretamente pela cortina entreaberta. Sua cabeça se via povoada de sensações, seus sentidos se embaralhavam, a respiração se tornava ofegante e os sorrisos espontâneos se emaranhavam naturalmente a paisagem.
Enfim havia chego o grande dia. Finalmente o longo período de três anos de namoro à distancia chegaria ao fim e a partir daquele momento ele poderia tê-la ao seu lado não apenas em pensamento.
Era uma manhã de dezembro e mal o dia começava o calor já oferecia o contraponto ao frio que envolvia sua espinha. Precisava vê-la, era urgente, era preciso, como se somente o seu sorriso pudesse tornar tudo real.
Chegou mais cedo a rodoviária, como forma de não ser surpreendido e a cada novo ônibus que chegava mais aumentava a ansiedade e mais ficcional parecia a realidade. O canto da unha do dedo indicador em carne viva o impedia de acreditar que era apenas um sonho. Confuso e embriagado em suas divagações decidia que não era um sonho, pois sonhos não podiam ser tão perfeitos.
Sentia os olhos pesados pelas poucas horas de sono e mal conseguiu identificar o ônibus que se aproximava, porém já sentia o perfume, o mesmo que embalara tantos momentos de felicidade a dois. Quando a porta se abriu e, seguidamente, passageiros que lhe pareciam coadjuvantes desembarcavam, um após um, como forma de delinear com maior emoção os ares de reencontro, um olhar tingiu de alegria, ou quem sabe alívio, aquele momento. Talvez até hoje não consiga descrever a intensidade e confusão do que sentiu. 
Ele sabia, os olhos dela diziam, os dois corações gritavam, aquele não era apenas mais um reencontro, não era só mais um beijo que se repetia, era o prenúncio de uma cena que renovaria todas as manhãs, dali em diante, até o fim dos dias.

domingo, 9 de outubro de 2011

HOJE JOGUEI TUDO FORA



Escrevi esta "divagação" em 11 de julho de 2005, 
revirando algumas memórias virtuais do
meu disco rígido encontrei-a e decidi postá-la.

Hoje joguei tudo fora, na esperança de não mais te encontrar.
Tem vezes que realmente são intragáveis os ares da sua ausência.
Mal consigo respirar que meus pulmões logo se enchem de sua presença.
Cada pincelada no papel se enche de cores tristes e sorrisos melancólicos.
Cada novo grito ecoa no vazio de um coração de paisagem sombria.
Tenho medo de não mais haver lugar para o novo.
De semear o vazio e cultivar o nada, para colher sabe-se lá o que.
A luz do dia me faz vulnerável, mas o quarto escuro não me esconde de mim mesmo.
O espelho reflete com exatidão o meu pesar.
E no lugar do reflexo um não-reflexo. 
E no meu lugar, tudo o que eu deixei de ser quando você me deixou.