Quando ela acordou já era tarde, mas ainda se ouvia cantar os pássaros, ainda havia horas para os ponteiros marcar. Por um instante sentiu-se só, e consigo mesmo sabia que, naquele momento, não era boa companhia. Todos os batons, perfumes e maquiagens que adornavam o espelho que trazia seu reflexo lhe causavam estranheza e lhe faziam faltar o ar.
Como um gatilho puxado sem pensar, o cinzeiro, ainda abarrotado de cinzas de uma madrugada de ansiedade e cafeína, torna-se projétil capaz de despedaçar sua imagem refletida, na esperança de dilacerar o coração ou provocar outra dor que, por hora, a fizesse esquecer desta.
Entretanto, um espelho que se quebra não é a sua imagem que se vai e as gavetas da memória continuam repletas de lembranças que insistem em fazer companhia, tornando até mesmo o oxigênio asfixiante. Mesmo sozinha não conseguia estar só. Eram muitas imagens para um único olhar, um único rosto que desejava ver pela última vez, mesmo que a última vez sempre se tornasse a penúltima.
Entre um trago e outro procurava se iludir e repetia para si mesma que a dor que se sente não é por alguém que partiu, mas pelo que ficou... migalhas que ainda alimentam a esperança. Dias seguidos trancada no quarto, antigas músicas repetidas traziam novas lágrimas. Muitas alternativas e nenhuma saída: de Jesus a Led Zeppelin, de meditação a cocaína, tudo se torna obsoleto quando até mesmo os lençóis amassados servem de lembrança para o que se queria esquecer.
O suicídio era uma opção, mas o medo de não conseguir fugir de imagens que pareciam imortais lhe fez desistir e entender que morrer para si mesma e para o mundo, pode reconstruir um labirinto sem sentido.
Ao colar o espelho e recolocar os cosméticos na penteadeira percebeu que a mortificação pode ser sinal de ressurreição, ainda que não ao terceiro dia, mas que os meses, os anos e o oxigênio podem curar. Basta respirar... calmamente. Apenas respirar...