quinta-feira, 23 de maio de 2013

PARA SER ESQUECIDO




Rabisco um guardanapo, misturando palavras, desenhos e marcas de saliva, enquanto misturo cervejas baratas, um destilado amargo e um aperitivo estranho, retirado de um vidro de conserva que mais parecia pertencer ao laboratório de anatomia de alguma faculdade de medicina. Em mesas de bar as conversas fluem em velocidade inconstante, lucidez insensata, mas minhas preocupações parecem fixas no vidro de conserva sobre o balcão, que parece me encarar de modo insistente.
Subitamente me sinto parte de uma pintura de Salvador Dalí, observando uma paisagem distorcida, com risos que parecem derreter-se ao meu redor, enquanto meu foco se volta a um felino de bigode chamuscado, olho furado e rabo deformado a roubar pedaços de salame picotados na forma de petiscos sobre o balcão, enquanto bêbados conversam de modo intrépido - como quem a qualquer momento irá de encontro ao chão - sobre assuntos aleatórios e desconexos, mas que àquela altura assumem toda relevância do mundo.
Entregue a estes terrores noturnos continuo meu processo de purificação, ingerindo doses generosas de culpa destilada, seguidas de copos gelados de perdão sem colarinho. Os guardanapos já não possuem ordem, mas fazem todo sentido. Mesmo que este sentido esteja escondido nas imagens distorcidas que tento visualizar através do copo cheio de cerveja.
Os risos obstruem qualquer delírio de sobriedade, as intermináveis declarações de amizade fazem parte do pacote. A nada elegante senhorita que oferece seus favores em troca de dinheiro rouba a cena com sua coreografia performática em cima da mesa de sinuca, na caçapa do canto, enquanto as bolas escapam pelas redes furadas se alojando por todos os lados do distinto recinto.
O cheiro de vômito e urina azedam o ambiente, mas mal são percebidos quando misturados ao suor e ao hálito etílico, pois estes se fazem mais perto do próprio nariz do que o banheiro. Tudo tão cheio de vida, tudo tão puro e desinteressado, que nos faz sentir como uma família. Tudo tão intenso e ao mesmo tempo tão pronto para ser esquecido mais uma vez... não fossem os guardanapos no bolso de minha calça...