sexta-feira, 30 de setembro de 2011

SENTIDO COTIDIANO





O sabor do vinho barato despertava os mais repulsivos instintos. A mesa apoiada em restos do que um dia foi uma cadeira de ferro, retorcida e enferrujada, somava-se a estranha sensação de dividir petiscos de amendoim e salame com seus novos companheiros. O aroma de fritura se misturava ao suor de quem, por horas a fio, empilhara caixas em troca de alguns míseros trocados. Os sorrisos amarelados e as opiniões tímidas eram os artifícios de quem procurava se ambientar a sua nova realidade, embora coração e mente se amargurassem por experimentar a decadência.
Ao voltar do banheiro, com as botas respingadas de urina, tirara uns poucos trocados da carteira, em notas miúdas e amassadas, bem como algumas moedas, que tilintavam nos bolsos da calça de brim desbotada, ressoando no compasso musical da realidade de um trabalhador. Minutos antes, enquanto urinava, escondera num dos bolsos duas notas de maior valor, lembrando que ainda restava muito mês pela frente e manter na carteira somente o necessário para a conta era o melhor modo de ficar a salvo daqueles que rotineiramente se encontravam sem dinheiro, mas sempre com muita sede.
Sentando-se novamente a mesa, ainda reclinou-se e fez alguns carinhos em um cão vira latas que também freqüentava aquele bar com frequência e despediu-se dos colegas.
O caminho até em casa não era longo, mas também não era o que se podia chamar de perto, talvez uns trinta quarteirões, diariamente percorridos em passos largos e não tão rápidos, pois o dinheiro do transporte rendia uma boa ajuda no aluguel. Enquanto caminhava lembrava dos gritos do patrão, do riso dos colegas que pareciam precisar de tão pouco para serem felizes. Lembrava também das contas atrasadas, da vidraça quebrada, da marmita que esquecera na empresa. Pensava que o pouco dinheiro que deixou para o dono do bar poderia lhe fazer falta no final do mês. Pensava... e por vezes quase chorava.
Entristecido via pelas ruas carros que nunca seriam seus, outdoors com propagandas de viagens que nunca faria. Recolhia do chão alguns panfletos, com eletrodomésticos que, mesmo com os prazos e parcelas a perder vista, onerariam demais sua receita.
Atravessou a última rua correndo, antes do ônibus que vinha rapidamente pela via. Alguns flashes ainda desenhavam mais um pouco de tristeza na tela opaca dos seus pensamentos.
Abriu a porta de casa, olhou em direção a cozinha, como quem procurava e implorava pelo sol em dia de tempestade, e ali, diante da mesa, todo o seu mundo mudava, toda a tristeza acabava num sorriso sincero, de quem por ele esperava todo o dia, tendo o dom de dar sentido a todas as dores e colorir toda a tristeza, tornando tudo o que não pertencesse aqueles olhos e lábios apenas restos do que nunca serão.

3 comentários:

  1. Lindo texto prof... é uma crônica, né?

    chego a sonhar com um amor assim, incondicional, algo que faça todo o resto perder o sentido...

    continue escrevendo, sempre me delicio com suas palavras bem escolhidas...

    Amanda

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  2. "Com um vinho barato, um cigarro no cinzeiro e uma cara embriagada no espelho no banheiro" minha mente repetiu, instintivamente, a música enquanto lia o texto. E por que não, ler duas ou três vezes, nesse caso? Belo texto!

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  3. Uma visão do cotidiano muito além do comum. Parabéns, Marcelo! Excelente!

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